Eu sei, mas não devia
O texto abaixo é da escritora Marina Colasanti. Trata-se de uma verdadeira obra de arte. Dada a beleza e o seu conteúdo, sua inserção neste blog agrega valor inestimável. Por ser um admirador nato de Antônio Abujamra e do programa Provocações, o vídeo segue junto ao texto. DELICIEM-SE!!!
"Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter
outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se
acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma
a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se
acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol,
esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está
na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus
porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para
almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está
cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E,
aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E,
aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não
acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números,
da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone:
hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A
ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que
necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do
que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais
dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as
revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao
cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado
na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar
condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque
que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação
da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a
não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no
pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses
pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento
ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila
e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os
pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola
pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a
gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar
a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca
e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que
aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma."
Sobre a autora: Marina Colasanti nasceu em Asmara, Etiópia, morou 11 anos na
Itália e desde então vive no Brasil. Publicou vários livros de contos,
crônicas, poemas e histórias infantis. Recebeu o Prêmio Jabuti com Eu sei, mas não devia e também por Rota de Colisão. Escreve, também, para revistas femininas e constantemente é
convidada para cursos e palestras em todo o Brasil. É casada com o escritor e
poeta Affonso Romano de Sant'Anna.
O texto acima foi extraído do livro "Eu sei, mas não
devia", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1996, pág. 09.
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